Primeiro magistrado da infância e juventude capixaba a ocupar uma diretoria da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o juiz de Direito Leandro Cunha Bernardes da Silveira defende, com veemência, uma discussão mais profunda das medidas para conter a violência infanto-juvenil no Brasil, muito além do discurso fácil da redução da maioridade penal.
Ele considera que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é uma das leis mais severas do mundo, por instituir 12 anos como a idade mínima para imputação penal ao adolescente em conflito com a lei, e que a situação seria bem encaminhada se fossem adotadas as medidas preventivas e protetivas para a infância que a própria lei determina.
E sentencia: “Numa abordagem estrita econômica, está comprovado que instituir escolas de tempo integral, como medida preventiva, é muito mais barato do que manter cerceados de liberdades os adolescentes que cometem infrações. Sem contar que nossas prisões já estão lotadas”.
Confira a entrevista completa ao jornalista José Caldas, do Portal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).
PORTAL TJES – A redução da maioridade penal entrou na pauta de discussão do Congresso Nacional, até de uma forma oportunista, como solução para a violência infanto-juvenil. De que forma o sr. acha que essa questão deve ser conduzida?
Juiz Leandro Silveira – O aumento da violência e criminalidade juvenis é uma realidade e é salutar que a sociedade esteja atenta e preocupada com a questão, e que o Parlamento busque mudanças legislativas para reduzir sua gravidade. Mas é preciso reconhecer, em primeiro lugar, que a violência é fenômeno de múltiplas causas e que é ingênuo e simplista acreditar que bastaria um projeto de lei para reduzi-la.
Concordo ser, plenamente, defensável o raciocínio pelo qual a perspectiva de ver-se privado da liberdade por mais tempo poderia desestimular um adolescente a praticar atos infracionais violentos, mas, para adotar as modificações legislativas neste sentido, não é necessário alterar o artigo 228 da Constituição Federal, que, por ser uma das chamadas “cláusulas pétreas”, não pode ser modificado. Nem afrontar, tampouco, a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da ONU, ratificada pelo Brasil em 1990 e incorporada, assim, ao direito brasileiro. A redução da maioridade penal, nos moldes propostos, contraria não apenas à Constituição como também à Convenção.
Por outro lado, tal discussão é também inadequada por representar um reducionismo inaceitável ante a complexidade da questão: o que precisamos, urgentemente, reduzir são os índices de violência e criminalidade por parte dos menores de 18 anos. Não há, porém, qualquer elemento que permita concluir que se atingiria esse objetivo, simplesmente, reduzindo-se a maioridade penal. Não há, outrossim, qualquer óbice formal a que, pelas mesmas premissas, se tornem mais rigorosas as próprias disposições do ECA, mantendo-se incólume o texto constitucional.
– Por que o Estatuto é considerado, por autoridades internacionais, uma legislação de primeiro mundo e muita gente o questiona no Brasil? Por que essa aparente contradição?
– O Estatuto da Criança e do Adolescente é, efetivamente, uma legislação moderna, sintonizada com o que há de mais avançado em termos de proteção integral à infância e juventude em escala mundial. Entretanto, em sua imensa maioria, os mecanismos nele previstos para proteção aos direitos fundamentais de nossas crianças e adolescentes nunca foram, adequadamente, implementados. As informações que muitas vezes chegam à opinião pública sob a forma de crítica à lei sinalizam, frequentemente, muito mais o descumprimento do que a lei determina do que, propriamente, alguma falha ou impropriedade da legislação.
Na verdade, o Estatuto está longe de ser uma lei tolerante ou leniente com a prática de crimes – a que denomina “atos infracionais” – por adolescentes: em alguns aspectos, como ao estipular a idade de doze anos como deflagradora da responsabilidade penal juvenil, sujeitando o adolescente, a partir de então, às sanções socioeducativas, alista-se como uma das legislações mais duras do mundo. A maioria dos países fixa em 14 anos a idade de início de tal responsabilização. Mas nada disso implica em dizer que esta lei não possa ou não deva ser aperfeiçoada ou, mesmo, tornada mais rigorosa em alguns de seus dispositivos. É um processo natural que as leis sofram modificações ao longo do tempo, de modo a que estejam sempre atualizadas e em sintonia com o momento presente.
– O Estatuto é uma legislação de 1990, portanto, com mais de duas décadas e até hoje, segundo especialistas, não foi plenamente aplicado. O que tem no Estatuto e que o Brasil ainda não faz?
– O Estatuto da Criança e do Adolescente já completou 23 anos. A lei assegura, por exemplo, o direito à saúde, à educação, ao lazer, à convivência familiar e social, dentre outras, além de obrigar o poder público a investir em políticas de atendimento, em medidas de proteção e socioeducativas – estas últimas aplicáveis em caso de prática de atos infracionais. Bem, não são necessários muitos argumentos para demonstrar o quão distantes nos encontramos do fiel cumprimento das determinações legais. Infelizmente, devemos reconhecer que, ainda hoje, para uma boa parcela dos adolescentes brasileiros em conflito com a lei, a atuação efetiva do poder público em suas vidas somente ocorreu no momento em que provocaram a reação do aparato repressivo estatal com a prática de um ato definido na lei como crime, e grave a ponto de resultar na privação de liberdade.
Vendo a questão sob um ponto de vista econômico, sai, comprovadamente, muito mais barato proporcionar a um estudante uma escola em tempo integral que manter um delinquente num estabelecimento prisional. Penso ser, urgentemente necessário, o reconhecimento de que será pouco eficiente a estratégia de tornar a lei mais severa para punir um jovem que a transgrida, se apenas por esta senda pretender-se reduzir a violência.
Tampouco se deve, a meu ver, incorrer no equívoco oposto, qual seja, o de justificar suas ações delituosas com exclusiva base em reducionismos ideológicos para defender-se uma lei leniente e tolerante com o ilícito. Mas não há como negar que investir pesado na proteção, na educação, na geração de oportunidades e, em suma, na implantação de medidas que visem à efetiva inclusão social de crianças e jovens como forma de reduzir a violência e criminalidade, foi o caminho apontado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente desde o seu advento, assim como, antes, pela própria Constituição Federal.
– Como se sentem os magistrados da Infância e Juventude diante das pressões, por exemplo, pela redução da maioridade e, ao mesmo tempo, com a falta de adoção dessas medidas preventivas previstas no Estatuto?
– Os colegas com que tenho tido contato, em sua imensa maioria, discordam, veementemente, que o incremento de medidas puramente punitivo-repressivas, ou seja, a adoção de leis mais severas e o aumento do tempo de privação de liberdade possam constituir-se, por si só, em meios eficazes de redução da violência juvenil. São, efetivamente, as medidas de inclusão social, e não as de exclusão do convívio social, as mais propriamente talhadas a conduzir a este almejado resultado.
De fato, o incremento da violência e das práticas infracionais não pode continuar sendo atribuído exclusivamente ao ECA, mas sim à ênfase na privação da liberdade como quase exclusiva política pública destinada ao adolescente em conflito com a lei, sem que esta, na prática, tenha qualquer efetividade socioeducativa na vida daqueles a quem foi aplicada.
Há de se reconhecer, finalmente, que o incremento da privação da liberdade em abrangência e extensão, num país que hoje, com cerca de 550 mil pessoas presas, já ostenta a quarta maior população carcerária do mundo, representará, além de uma opção político-legislativa, também um forte impacto nos cofres públicos, com o qual caberá à sociedade como um todo arcar.
– O administrador público está sujeito à imputação de crime de responsabilidade quando deixa de cumprir as obrigações do Executivo para com o Estatuto?
– Registro, neste particular, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 227 ser dever da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, etc.
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado em 1990 com o propósito de dar concretude a essas exigências constitucionais. Quase um quarto de século depois, é natural que a lei deva sofrer alterações, com vistas a manter-se atualizada. Mas o incremento da violência juvenil é fenômeno por demais complexo e abrangente para que possa continuar atribuído a alguma falha desta lei em si.
Se o poder público, por exemplo, atendesse com maior diligência aos deveres que lhes são impostos em relação à das chamadas medidas socioeducativas em meio aberto, tais como a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade, poderia ser obstaculizada e revertida a progressão infracional das condutas, dotando tais ações de efetividade socioeducativa, isso a um custo infinitamente mais baixo.
A opinião pública deve ser informada, com efeito, que problemas cuja origem, frequentemente, se atribui ao Estatuto da Criança e do Adolescente muitas vezes não têm causa outra que não a recusa renitente do poder público em dar a esta lei adequado cumprimento. Ainda que existem, sim, mecanismos judiciais hábeis a compelir os administradores ao cabal implemento de seus ditames – embora aqui se encontrem muitos abalizados críticos consoando que a lei poderia ter sido mais clara e rigorosa ao delimitar os exatos contornos, inclusive criminais, de tal responsabilização.
Em conclusão, afirmo que, de meu ponto de vista, é inadiável que, de um amplo debate – e não de um reducionismo simplista -, se engendrem mecanismos que tenham por norte a efetiva promoção da proteção integral que nossa Constituição impõe e que o ECA disciplina. De minha parte, estou convicto de que para caminharmos em direção a esta meta devemos dedicar muito maior ênfase à efetiva promoção – e menos à privação – da liberdade de nossos adolescentes.
Foto: Tais Valle/TJES
Assessoria de Comunicação do TJES
18 de Julho de 2013
Retirado no dia 22/07/2013 do TJ/ES